Quito, 22 de março: retrato da América Latina

O mesmo confronto político que acaba de ocorrer nas ruas da capital equatoriana, explicitamente, reproduz-se por todo o continente latino-americano, desde o norte do México até o sul do Chile. Com maior ou menor intensidade, movimentos indígenas, camponeses e organizações sociais estão se posicionando contra a execução dos grandes projetos de desenvolvimento em curso na região: represas, agronegócio, mineração, petróleo e projetos imobiliários. O artigo é de Tadeu Breda.

(*) Publicado originalmente na Rede Brasil Atual.

No dia 22 de março, a capital do Equador, Quito, foi um dos retratos mais fiéis da atualidade política, econômica e social da América Latina. Isso porque, no dia 22, duas grandes concentrações populares ocorreram na cidade.
De um lado estavam indígenas, ambientalistas, setores do movimento camponês, estudantil e docente, que finalizavam uma marcha de 15 dias após terem cortado o país de sul a norte. O protesto foi encabeçado pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) e pedia o fim das políticas extrativistas do governo. Sobretudo, são contrários à mineração industrial.

Na outra ponta estavam os apoiadores do presidente Rafael Correa, gente que compartilha os ideais da Revolução Cidadã. A manifestação governista foi liderada pelo próprio mandatário, que, nas ruas, contou com o apoio de ministros, membros de sua administração, parlamentares e militantes de seu partido, Alianza País.

Na capital equatoriana, no dia 22, estavam em disputa duas noções distintas de desenvolvimento, dois projetos políticos, duas visões de mundo, duas maneiras de entender riqueza e bem-estar. Parecem irreconciliáveis — e felizmente a disputa se deu apenas no nível discursivo. As autoridades não permitiram que os grupos se encontrassem. Suas ideias, porém, estão em embate claro e aberto.

Governo vs. Indígenas
O grupo liderado pelo movimento indígena quer uma mudança radical na política de desenvolvimento do Equador. Apoiaram Rafael Correa nas eleições de 2006, na convocatória para uma Assembleia Constituinte, em 2007, e no referendo que aprovou a nova Constituição, em 2008. Mais que isso, a Conaie foi uma das grandes responsáveis pela construção do momento político que elegeu o presidente.

Mas a aliança acabou com a aprovação da Lei de Mineração, em 2009. Os indígenas — assim como muitos equatorianos — não aceitam que o país continue trilhando o caminho do extrativismo, o que significa exportar recursos naturais com baixo valor agregado e, em troca, ficar com impactos ambientais.

Já Rafael Correa faz questão de lembrar que foi eleito pela maioria dos cidadãos do Equador em duas ocasiões. É, pois, representante da vontade popular. Em discurso perante seus apoiadores, no dia 22, disse aos grupos opositores que, se desejam fazer valer suas ideias, devem antes ganhar as eleições. “Somos maioria e não estamos dispostos a que os mesmos de sempre queiram acabar com cinco anos de avanço e progresso”, bradou.

Em coro com o chefe de Estado, o presidente da Assembleia Nacional, Fernando Cordero, defendeu a mineração e assegurou que a extração de cobre e ouro irá beneficiar as comunidades tradicionais. “Precisamos de 40 bilhões de dólares para oferecer todos os serviços básicos a todos os cidadãos equatorianos”, expressou. “Precisamos conseguir esse dinheiro.”

Mocinhos e bandidos
Não há mocinhos ou bandidos na história. Rafael Correa foi eleito com o mandato histórico de reverter os malefícios causados por duas décadas de neoliberalismo no Equador. No período em que os governos do país fizeram ouvidos surdos ao povo e acataram as recomendações do FMI, quem sofreu foi o Estado. Por consequência, as políticas públicas em educação, saúde, agricultura, indústria, segurança, moradia e energia se enfraqueceram — e o povo empobreceu.

Desde que assumiu o poder, o presidente vem atacando tais problemas. Por isso, tem ganhado o voto da população. Para continuar com seu projeto, porém, precisa de dinheiro. E escolas, hospitais, estradas custam caro. Rafael Correa segue o famoso bordão escrito pelo aventureiro alemão Alexander Von Humboldt no século 18 e frisa: não podemos continuar pobres se estamos sentados sobre um saco de ouro.

Para o presidente, o caminho mais curto até os recursos financeiros — e o desenvolvimento — é a mineração. Mesmo porque as reservas petrolíferas equatorianas, responsáveis por metade do PIB nacional, estão com os dias contados.

Entretanto, a coalizão de organizações sociais que começa a orbitar novamente em volta do movimento indígena, como ocorria nos anos 90, pede uma mudança radical de paradigmas. Todos querem o desenvolvimento do Equador, claro: mas não concordam com os métodos do governo. Avaliam que o extrativismo de hoje é o mesmo que norteia a economia equatoriana desde sempre — e têm a seu lado a verdade histórica de que vender matérias primas para os países ricos pode até ter gerado riqueza, porém jamais trouxe desenvolvimento.

“Com ouro e cobre, o país mais pobre” ou “A água vale mais que o ouro” são slogans que dão o tom dos protestos que cruzaram o Equador nas últimas duas semanas. São as comunidades indígenas e camponesas as que mais sofrem os efeitos colaterais da exploração de recursos naturais.
Enquanto as cidades se beneficiam da balança comercial positiva, os povoados da montanha e da floresta, que têm os poços de petróleo e as minas no quintal de casa, veem seus cursos d’água, solo e ar contaminados por uma variedade de metais pesados e demais elementos tóxicos. Assim, ficam impossibilitados de viver de acordo com seus costumes e tradições — direito assegurado pela Constituição Plurinacional de 2008.

Não por acaso, a marcha do movimento indígena e aliados, que foi chamada de Marcha pela Vida e pela Dignidade, foi programada para chegar a Quito em 22 de março, quando se comemora o Dia Mundial da Água.

Luta pelo desenvolvimento
O mesmo confronto político que acaba de ocorrer nas ruas da capital equatoriana, explicitamente, reproduz-se por todo o continente latino-americano, desde o norte do México até o sul do Chile. Com maior ou menor intensidade, movimentos indígenas, camponeses e organizações sociais estão se posicionando contra a execução dos grandes projetos de desenvolvimento em curso na região: represas, agronegócio, mineração, petróleo e projetos imobiliários.

Não porque sejam contra o desenvolvimento, mas porque querem outro tipo de desenvolvimento. Um desenvolvimento que não seja sinônimo de devastação ambiental, de repressão aos movimentos sociais, de exclusão social, de desrespeito aos meios de vida comunitários. Um desenvolvimento que — como diz o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos — garanta a igualdade entre os homens, quando a diferença os inferioriza, mas que permita também a existência de diferenças, quando a igualdade os descaracteriza.

É um desafio formidável, que nem o presidente Rafael Correa nem seus colegas “progressistas” ao longo da América Latina estão sabendo enfrentar. Os “governos de esquerda” mostraram que existe um caminho alternativo ao neoliberalismo. Porém, não conseguiram formular uma saída ao sistema que ao longo dos séculos tem sido vertedouro de desigualdades na região. O extrativismo gera destruição ambiental, empobrece as comunidades e concentra renda desde a época colonial.

A marcha que chegou à capital equatoriana no dia 22 de março quer colocar um ponto final nesta lógica. A manifestação liderada pelo presidente Rafael Correa acredita que o governo pode utilizar o dinheiro que virá da exploração mineral para suprir as necessidades básicas da população.

É uma batalha eminentemente política. Nas ruas de Quito, um resumo dos desafios que enfrentam os povos latino-americanos.

(*) Tadeu Breda é autor de O Equador é Verde — Rafael Correa e os Paradigmas do Desenvolvimento (Editora Elefante, 2011)

Carta Maior

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